Contos

 

 

O MURO DA VERGONHA  

 

 

 

     Seis horas da manhã começa a rotina na rua 34, Parque São Marcelo. Dona Zefa puxa água do poço, enche baldes; leva-os até o tanque; bate as roupas, coloca-as pra quarar ao sol. Mais tarde, passa as brancas no anil, torce, enche os varais, levanta-os com grossas varas de bambus.

   Na casa 12, Dona Ana frita bifes para a marmita de seu Zeca, enquanto ele amarra as ferramentas na bicicleta. A casa deles tem algo mágico, devido ao grande número de árvores de Natal, no quintal, fonte de renda no final de ano.

    Na casa 16, Maria prepara o café e briga com os irmãos mais novos, apressando-os para a escola. No quintal tem dálias de todas as cores e tamanhos. Todos pedem, e quanto mais ela colhe, mais flores nascem.

   Na porta da venda do seu Pedro já tem fila para comprar o pão e o leite. No período da tarde a molecada espera a vez para escolher feijão, assim seu Pedro vende-o limpo e os meninos ganham o dinheiro para comprar ali mesmo, têta de nega, mariola, ou coração de doces de abóbora e o mais importante: a linha, para o campeonato de pipas. Aliás, a Rua 34 é campeã em pipas e carrinhos de rolimãs, na disputa com o Jardim Lilian.

   A casa 17 é a única de madeira e tem por vizinhos os terrenos baldios. Sua moradora-dona Ditinha, benzedeira e parteira, é respeitada por todos e apesar da avançada idade, passa o dia de pé, benzendo e atendendo. No quintal de Vó Ditinha, tem todos os tipos de ervas medicinais, arruda, alecrim, capim santo, e um sabugueiro que socorre as crianças com sarampo.

 O bairro não tem asfalto, luz elétrica ou água encanada. Em todas as casas tem poço, lampião a querosene e na maioria dos quintais tem bananeiras, goiabeiras, balanço, muitas flores, muitos animais e os banheiros distantes das casas.

   A casa 20 é de seu Sebastião, homem bom que não tem boca pra nada; já sua esposa, Dona Aparecida, é intrigueira, fofoqueira e não se dá bem nem com ela mesma, como dizem as más línguas. Na casa deles o que chama a atenção é a limpeza. O quintal é varrido esmeradamente com vassoura de alecrim do mato e os alumínios brilham na cerca de galhos.

   A casa mais retirada e conhecida é de seu Joãozinho. Fica na ladeira da 34 esquina com a 37 . O quintal mistura-se ao terreno baldio, na parte de cima e dá passagem para o campinho de futebol. Na parte de baixo tem o muro construído pela Prefeitura para conter a erosão. Conhecido por todos como o muro da vergonha - local preferido dos namorados. Seu Joãozinho vive muito bem, com, gatos, cachorros e loros que falam o tempo todo, imitando os que por ali passam . Em seu quintal tem hortas de alface, couve, almeirão, rúcula, além dos pés de tomate, chuchu e abobrinha, que se espalham por um pedaço de cerca e pelo chão. Toda a produção transforma-se em presentes para vizinhos e amigos, É um homem gentil, sorridente, de bem com a vida; adora fazer um charme especial presenteando as moças com os belos e perfumados cravos vermelhos, de seu próprio cultivo.

 Nos encontros de portão, em noites quentes, os vizinhos contam causos, e Dona Aparecida fala pelos cotovelos. Mas quando o assunto é o muro da vergonha, surge o bate boca entre as mulheres -Dona Cida, como é chamada por todos, diz que as suas filhas tem uma educação ímpar, que vem de berço; não se igualando às moças da rua,sem eira- nem- beira; as outras mães viram leoas e assim começa as ofensas .

   -Vai Jabiraca cuidar da sua vida!...

   -Quem olha muito pro rabo dos outros não vê a sujeira do seu.

   -Vocês são umas despeitadas por não ter as filhas de ouro que eu tenho. Elas tem vergonha na cara, não ficam se esfregando com machos, no pé do muro.

Mas é assim mesmo - já dizia minha mãe: quem solta suas cabritas não pode reclamar dos bodes. E sai cada uma para um lado, falando e xingando.Os homens se divertem sem que elas saibam.

   O povo da rua 34 só dá trégua e fica unido, na procissão do Cristo morto, quermesses,casamentos e velórios. Porém, quando o assunto é o muro da vergonha a coisa muda e as fofocas se estendem por semanas. Na feira, na venda, no açougue, nas cercas.

   -Quem ela pensa que é?...-Diz a mãe de Maria.

   -Qualquer hora vamos dar uma surra nessa cachorra, para ela calar a matraca diz Dona Zefa, mãe de três filhas adolescentes.

   -A rotina da rua 34 era assim até à noite passada.Noite histórica.O silencio reinava nas casas; havia terminado a radio novela e “A Voz do Brasil”, quando se ouviu uma tremenda gritaria . Todos, inclusive os moradores das vielas e ruas vizinhas vieram em socorro da moça que gritava e chorava.

-Socorro!... Pára!...   – Chega, pelo amor de Deus!...

   Pensou-se a princípio em assalto, agressão, briga de casal ou coisa parecida. Porém, diante da cena, ninguém atreveu-se a mover uma palha. Todos olharam espantados, (surgiram aqueles risinhos no canto da boca de bem feito!...) e a atenção foi para a agressora, não para a vitima.

   Dona Aparecida, transtornada trazia sua filha ladeira acima, debaixo de   fio de ferro, gritando em alto e bom som:

 -Eu te mato!... -como pôde fazer isso comigo?... - Olha pra mim. sua ordinária. -Tá vendo onde é o muro da vergonha, agora? ...É na minha cara!...

 

 

 

Um conto e ilustração de

Neli Maria Vieira

Santo André, 23/10/08

Conto publicado no jornal A VOZ - Mauá

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